
(Foto: Paulo Paiva/DP)
O cuscuz, prato que há séculos está presente na mesa dos nordestinos, foi recentemente reconhecido como Patrimônio Imaterial da Humanidade pela UNESCO. A declaração reforça a importância cultural desse alimento, que transcende a culinária e se firma como um elemento essencial na identidade e na memória afetiva do povo nordestino. Em Pernambuco, a valorização do cuscuz ganha ainda mais força, já que o estado é um dos maiores consumidores desse prato no Brasil.
O jornalista e antropólogo Bruno Albertim ressalta que o cuscuz é mais do que uma tradição alimentar, sendo um componente fundamental da rotina nordestina. “Comer um cuscuz de manhã significa começar bem o dia, começar o dia com força, embora seja um alimento que se preste a várias ocasiões. Ele vai do café da manhã até o jantar”, explica. Essa presença constante reflete a versatilidade do prato, que pode ser consumido puro ou acompanhado de leite, ovos, carne de sol, queijo coalho e diversos outros ingredientes.
Uma trajetória de adaptação e resistência
A história do cuscuz remonta ao Norte da África, onde era originalmente feito com sêmola de trigo. Com a chegada dos portugueses ao Brasil, a técnica de preparo foi adaptada para o milho, ingrediente abundante na região Nordeste. O resultado foi a versão amarela e granulada, cozida no vapor, que se tornou um símbolo da culinária nordestina.
Bruno Albertim destaca a importância desse processo de adaptação dentro do contexto histórico e cultural brasileiro. “Na medida em que você tem uma cultura alimentar muito globalizada, acaba criando um ambiente de favorecimento e valorização das particularidades alimentares dos povos. Ou seja, nós precisamos nos diferenciar no mundo a partir daquilo que temos como únicos, e aí o cuscuz tende a se valorizar cada vez mais”, afirma.
A globalização, que trouxe consigo a padronização dos hábitos alimentares, também impulsionou a redescoberta e a valorização das culinárias regionais. Hoje, o cuscuz nordestino ultrapassa fronteiras e já figura nos cardápios de restaurantes sofisticados fora da região, conquistando novos paladares e reforçando seu status como um patrimônio cultural.
Mais do que comida, um elo afetivo
Para além do sabor e da tradição, o cuscuz carrega significados afetivos e sociais. Segundo Albertim, a comida é um grande operador de relações, pois ela “nos ajuda a construir as noções de pertencimento, as noções também de não pertencimento. A comida indica quem é mais ou quem é menos pobre, quem é mais ou quem é menos rico. A comida indica a religiosidade de uma pessoa, se estamos num dia cotidiano ou num dia de festa”.
No Nordeste, o cuscuz vai além da mesa: está presente na música, na literatura e até mesmo na linguagem popular. Expressões como “tá tudo em cuscuz” (quando algo está certo) e a menção do prato em versos de poetas e repentistas mostram como ele faz parte da identidade cultural da região.
O reconhecimento da UNESCO reforça essa relevância e incentiva a preservação da tradição. Embora um título não garanta a sobrevivência de um hábito, ele serve para evidenciar a importância do cuscuz como um elemento cultural. Como Albertim pontua, “esses títulos, na verdade, nenhuma tradição sobrevive apenas por força de lei. Uma tradição só tem a capacidade de ser reconhecida como tal se ela tiver aderência”.
Assim, o cuscuz segue firme como um símbolo do Nordeste, alimentando não apenas o corpo, mas também a memória e a identidade de um povo.